Deliberação n.º 51/2001

COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS

DELIBERAÇÃO n.º 51/2001, de 3 de Julho

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  1. O direito de acesso a dados de saúde. Considerações gerais
  2. Pedido de informação relativa a prestação de cuidados de saúde, para pagamento de facturas por Seguradoras ou «sub-sistemas de saúde»
  3. Solicitações de instituições de saúde e seguradoras de documentação necessária à continuidade da prestação de cuidados
  4. Pedidos formulados para elaboração de relatório de reforma e aposentação
  5. Cópia de documentação clínica a solicitação dos Tribunais e da Polícia
  6. Pedidos efectuados por advogados do próprio com apresentação de procuração forense
  7. Acesso a dados por familiares de doentes falecidos
  8. O acesso às Companhias de Seguros no contexto da morte de titulares de seguros de vida

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O Hospital Egas Moniz vem solicitar à CNPD a emissão de parecer em relação aos diversos pedidos que lhe são formulados por entidades terceiras que pretendem aceder a dados de saúde dos doentes.

I. O direito de acesso a dados de saúde. Considerações gerais

1. O artigo 268.º n.º 2 da Constituição da República dispõe que os cidadãos têm direito de acesso “aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à … intimidade das pessoas”.

Por sua vez, o artigo 26.º n.º 1 da CRP reconhece o direito à identidade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada.

O artigo 18.º n.º 2 da CRP dispõe que a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

A restrição desses direitos terá que ser feita numa ponderação de interesses conflituantes e através da “avaliação comparativa dos interesses ligados à confidencialidade e à divulgação”([1]). Essa ponderação obedece, como refere Vital Moreira([2]), à verificação cumulativa de várias condições:

«a) Que a restrição esteja expressamente admitida pela Constituição;

b) Que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido;

c) Que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária a alcançar esse objectivo;

d) Que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito».

Como refere o Ac. do STA de 10 de Julho de 1997([3]) “só através de uma casuística ponderação, com vista a uma possível harmonização dos referidos direitos em causa, nomeadamente através do critério metódico do melhor equilíbrio possível entre direitos colidentes, poderá ser solucionada a questão”.

2. É evidente, desde logo, que o artigo 268.º n.º 2 da CRP não consagra um «direito absoluto» uma vez que o próprio texto é expresso em relação à possibilidade de a lei poder estabelecer limitações ao direito de acesso aos arquivos e registos administrativos.

Na linha desta disposição, o acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de Maio de 1999([4]) é claro ao reconhecer – sem qualquer dúvida – que o artigo 268.º n.º 2 abre caminho à possibilidade de a lei definir limites ao direito de acesso quando estiverem em causa “matérias de segredos de Estado, de segredos de instrução criminal e de intimidade das pessoas”([5]).

O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que o respeito pela vida privada (art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) “é um dos direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária, que comporta o direito das pessoas manterem secreto o estado de saúde e, por outro lado, que podem ser impostas restrições aos direitos fundamentais por ela protegidos desde que correspondam a objectivos de interesse geral e não constituam, relativamente ao fim prosseguido, uma intervenção desproporcionada e intolerável que atente contra a própria essência do direito protegido”([6]).

Para Paulo Mota Pinto ([7]) a defesa da privacidade visa “evitar ou controlar a tomada de conhecimento ou a revelação de informação pessoal, isto é, daqueles factos, comunicações ou opiniões que se relacionam com o indivíduo e que é razoável esperar que ele encare como íntimos ou pelo menos como confidenciais e que, por isso, queira excluir ou, pelo menos, restringir a sua circulação”.

J. Gomes Canotilho e Vital Moreira([8]) salientam que o direito à intimidade da vida privada se analisa em dois direitos menores: «(a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informação sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (art.º 80 do Código Civil)».

A jurisprudência do Tribunal Constitucional caracterizou o conceito de “vida privada” como «o direito de cada um ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias»([9]), ou seja, «o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular» ([10]).

O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República várias vezes se pronunciou sobre as questões relativas à privacidade, considerando pacífico que a intimidade da vida privada de outrem é um valor protegido pelo nosso ordenamento jurídico, merecendo, aliás, consagração constitucional. A privacidade compreende «aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe»([11]).

Paulo da Mota Pinto([12]) considera que «o estado de saúde da pessoa faz parte, sem dúvida, da sua vida privada», tal como as suas «deformações físicas e hábitos sexuais».

O Tribunal Constitucional([13]) considera que os dados de saúde integram a categoria de dados relativos á vida privada assumindo particular relevância «a tónica da confidencialidade, em conexão com o direito à reserva da intimidade da vida privada, com assento no n.º 1 do artigo 26.º da CR».

3. Neste contexto, a doutrina salienta – com especial realce – a necessidade de, neste domínio, conferir relevo ao segredo profissional (segredo médico). A sua protecção assenta em motivos de interesse particular (protecção da privacidade do doente), bem como em fundamentos de interesse geral e público (preservação de confidência necessária nas relações médico-doente).

Pode afirmar-se, em termos gerais, que o “segredo profissional é a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional”[.1] ([14]).

O dever de sigilo abrange, deste modo, todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua actividade, ou por causa dela, quando revelados pelo doente ou por terceiro a seu pedido, quando o médico deles se tenha apercebido ou lhe tenham sido comunicados por outro médico[.2] . O segredo é uma “condição necessária da confiança dos doentes: é importante que todo o ser humano necessitado de socorro saiba que pode dirigir-se ao médico sem risco de ser traído”([15]).

O conceito tradicional de sigilo médico – que estabelecia uma relação de confidência na relação directa entre a figura do “médico assistente” e o doente – relativizou-se e o sigilo médico assume-se, actualmente, como um «segredo partilhado»([16]) na medida em que o diagnóstico e a prestação de cuidados de saúde é feita em equipa (grupo de médicos no mesmo serviço) ou através da troca de informações entre profissionais de equipas diferentes.

Mas a «partilha da informação clínica» deve ser feita na estrita medida do necessário à prestação de cuidados de saúde, ou seja, a informação de saúde (v.g. o diagnóstico) só deverão ser transmitidos quando se revelem necessários à prestação de cuidados de saúde ao utente. Como refere Liliane Dussere([17]) a “circulação da informação entre médicos que participam nos cuidados de saúde de um doente é necessária e é feita no interesse do doente, e a jurisprudência reconheceu a noção de «segredo partilhado» entre o pessoal que presta cuidados e os médicos que tratam os doentes”.

A circulação de informação deverá obedecer a um princípio de «confidência necessária» em que serão determinantes para definir o “âmbito do segredo” o interesse do doente, a natureza da informação e os reflexos que a sua divulgação traz para a sua privacidade.

Ensina Rabindranath Capelo de Sousa([18]) que “relativamente a diversas formas de sigilo há que distinguir as posições jurídicas das pessoas de confiança no sigilo das de terceiros. Estes violam a vida privada sempre que se intrometem indevidamente na esfera do segredo, quando tomam conhecimento não autorizadamente dos segredos de outrem e, obviamente, quando transmitem ou se aproveitam do segredo. Relativamente às pessoas de confiança no sigilo, embora obviamente seja lícita e presumida a tomada de conhecimento do segredo, já é juscivilisticamente ilícita a não consentida captação da documentação do mesmo, assim como a divulgação não autorizada do segredo ou um aproveitamento deste de um modo contrário à recognoscível vontade do autor da confidência, os quais se devem entender não apenas como violações contratuais ou negociais, quando vigorar um contrato ou um negócio jurídico entre o autor da confidência e o confidente que obrigue a sigilo (v.g. profissional), mas, prima facie, como ilícitos extracontratuais do direito à esfera privada”.

Uma banalização do segredo médico e um acesso generalizado à informação de saúde por parte das seguradoras, dos familiares dos falecidos, dos sub-sistemas de saúde no âmbito do pagamento dos cuidados de saúde, para além de consubstanciar uma intromissão indevida na esfera privada dos cidadãos gera, necessariamente, uma grande desconfiança em todo o sistema. A generalização da devassa através do acesso à informação em poder da Administração – para além poder gerar responsabilidade contratual e extra-contratual (e até criminal) – pode ter efeitos perversos e determinar uma reacção negativa nos cidadãos e levá-los a silenciar muita da informação que, até agora, fornecem.

As mesmas preocupações são partilhadas por Paula Lobato Faria([19]) quando refere que “uma falta de confiança na discrição dos médicos conduzirá os doentes a evitar uma narração completa sobre o seu estado, situação que impedirá, logicamente, um bom diagnóstico, ou mesmo evitar completamente qualquer consulta, em caso de doença “estigmatizante”, como v.g. a SIDA, outras doenças sexualmente transmissíveis ou doenças mentais; se estas faltas de confiança se generalizarem levam ao colapso da realização do interesse público e da protecção da saúde pública”.

4. Assim, só em casos muito excepcionais o direito à reserva deverá ser sacrificado. A doutrina só admite que o interesse público que reconheceu o direito à confidencialidade deve ceder “perante outro interesse público mais forte e, por isso, a obrigação de segredo não deve ser mantida quando razões superiores àquelas que determinaram a sua criação imponham a revelação dos factos conhecidos durante as relações profissionais”([20]).

O Tribunal Constitucional tem entendido de forma pacífica que “nas relações entre os particulares e o Estado se introduza a noção de respeito da vida privada, de modo a que o Estado não afecte o direito ao segredo e a liberdade da vida privada senão por via excepcional, para assegurar a protecção de outros valores que sejam superiores àqueles([21]).

Vários diplomas legais, bem como o Código Deontológico dos Médicos foram sensíveis a estes princípios. Vejamos algumas disposições:

1) A protecção dos direitos de personalidade decorrem, desde logo e como vimos, do direito constitucional que consigna a defesa da reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26.º n.º 1 da CRP).

2) O princípio da reserva foi reafirmado no artigo 80.º do Código Civil, consignando o artigo 70.º n.º 1, no âmbito da tutela da personalidade, que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à ofensa à sua personalidade física e moral”. Mais uma vez temos aqui, como refere a doutrina([22]), a protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada que integra, entre outros direitos especiais de personalidade, a tutela da vida, da integridade física, da liberdade, da honra, do bom nome e da saúde.

3) A Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90 de 24 de Agosto) considera que «deve ser promovida uma intensa articulação entre os vários níveis de cuidados de saúde, sendo de garantir a circulação recíproca e confidencial da informação clínica relevante sobre os utentes» (Base XIII, n.º 2). Por isso, de entre os direitos dos utentes, assume particular relevância a obrigação de «respeito pela confidencialidade sobre os dados pessoais revelados» (Base XIV, al. d). Por força do artigo 6.º n.º 1 al. a) do DL n.º 19/88, de 21 de Janeiro – que aprovou a lei de gestão hospitalar – um dos princípios que deve nortear a actuação dos órgãos da administração e de direcção técnica dos hospitais do SNS é o do “respeito pelos direitos dos doentes”.

4) O DL n.º 16/93, de 23 de Janeiro – que aprovou o regime geral dos arquivos e do património arquivístico, na sequência da autorização legislativa dada pela Lei n.º 18/92, de 6 de Agosto – estabelece que “não são comunicáveis os documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico, bem como os que contenham dados pessoais que não sejam públicos, ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou a intimidade da sua vida privada e familiar e a sua própria imagem, salvo se os dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contém, sem perigo de fácil identificação, se houver consentimento unânime dos titulares dos interesses legítimos a salvaguardar ou desde que decorridos 50 anos sobre a data da morte da pessoa a que respeitam os documentos ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos sobre a data dos documentos”.

5) O segredo profissional assume particular relevância, igualmente, como obrigação deontológica.

O Estatuto da Ordem dos Médicos (aprovado pelo DL 282/77, de 5 de Julho) enuncia como dever dos médicos a obrigação de «guardar segredo profissional (art. 13.º al. c).

O Código Deontológico da Ordem dos Médicos([23]) tem várias disposições – artigos 67.º a 80.º – sobre segredo profissional e arquivos clínicos. Merecem particular realce as seguintes disposições:

a) Artigo 68.º – O segredo profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício do seu mister ou por causa dele;

b) Artigo 69.º – Os directores, chefes de serviço e médicos assistentes dos doentes estão obrigados, singular e colectivamente, a guardar segredo profissional quanto às informações clínicas que, constituindo objecto do segredo profissional, constem do processo individual do doente organizado por quaisquer entidades colectivas de saúde, públicas ou privadas.

c) Artigo 78.º – Sempre que o interesse do doente o exija, o médico deve comunicar sem demora a qualquer outro médico assistente, os elementos do processo clínico necessários à continuidade dos cuidados.

d) Artigo 122.º – 1. O médico assistente que envie doente a hospital deve transmitir aos respectivos serviços médicos os elementos necessários à continuidade dos cuidados clínicos.

2. Os médicos responsáveis pelo doente no decurso do seu internamento hospitalar, devem prestar ao médico assistente todas as informações úteis acerca do respectivo caso clínico.

6) O artigo 195.º do Código Penal prevê, explicitamente, o consentimento como elemento negativo relativo ao crime de violação da obrigação de segredo. Tratando-se de funcionário público a violação do segredo por funcionário é punível nos termos do artigo 383.º do Código Penal.

7) Há outras disposições avulsas que estabelecem, de forma expressa, a obrigação de confidencialidade na área da saúde. A título de exemplo podem referir-se a Lei n.º 12/93, de 22 de Abril (colheita e transplantação de órgãos) – que proíbe, salvo consentimento, a revelação da identidade do doador ou do receptor (art. 4.º) – ou o DL n.º 97/94, de 9 de Abril (sobre ensaios clínicos) que proíbe a “revelação de dados pessoais” (art. 11.º). No âmbito da medicina do trabalho o DL 26/94, de 1/2, ratificado pela Lei n.º 7/95, de 29 de Março, refere que a ficha clínica está sujeita ao regime do segredo profissional, só podendo ser facultada às «autoridades de saúde e aos médicos do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho» (art. 17.º)([24]).

8) Para além da possibilidade de quebra do sigilo através do consentimento do titular dos dados, há disposições legais expressas que permitem a divulgação de informação clínica. Será o caso da Lei de Bases da Luta contra as Doenças Contagiosas (Lei n.º 2036, de 9/8/1949) e a Portaria 1071/98, de 31 de Dezembro, que enuncia as doenças de Declaração Obrigatória, as disposições do Código de Processo Penal (art. 135.º) e do Código de Processo Civil (art. 519.º).

As disposições citadas e as abundantes referências à doutrina e jurisprudência permitem evidenciar dois princípios fundamentais:

1) Na sequência do artigo 268.º n.º 2 da CRP, a lei estabeleceu limites ao acesso aos documentos que contenham dados de saúde. A defesa da confidencialidade e da privacidade devem, por princípio, limitar o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos([25]);

2) Quando houver colisão com outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos a possibilidade de revelação dos dados passa, necessariamente, por uma disposição legal que procederá à harmonização dos direitos em conflito.

5. Em relação ao acesso a «documentos administrativos» o artigo 7.º n.º 7 da Lei 65/93, de 26 de Agosto([26]) estabelece que “o acesso…aos documentos referentes a dados pessoais com tratamento automatizado…rege-se por legislação própria”.

Essa «legislação própria» é a Lei 67/98, de 26 de Outubro. Efectivamente, sendo o tratamento submetido à apreciação prévia da CNPD (cf. art. 27.º) e devendo o pedido de notificação especificar “as categorias de entidades a quem podem ser transmitidos os dados” (cf. art. 30.º n.º 1 al. c), é lógico que o pedido de comunicação de dados a terceiros seja apreciado por esta Comissão([27]).

As condições de legitimidade para o tratamento de dados de saúde – nele se englobando, em face da definição ampla do artigo 3.º al. b), a “comunicação por transmissão” ou por “difusão” – rege-se pelas disposições do artigo 7.º da Lei 67/98 ou por legislação avulsa, por força da remissão constante do seu n.º 2.

Para finalizar estas considerações gerais, interessa evidenciar que o artigo 7.º n.º 4 da Lei 67/98 estabeleceu um regime particular em matéria de tratamento de dados de saúde, em face das finalidades (prevenção, diagnóstico, prestação de cuidados de saúde e gestão de serviços de saúde) e desde que o tratamento seja processado por profissional de saúde obrigado ao sigilo profissional.

Estas considerações gerais não deixarão de influenciar o desenvolvimento específico das várias questões que nos são colocadas. Passemos, então a responder às questões colocadas.

II. Pedido de informação relativa a prestação de cuidados de saúde, para pagamento de facturas por Seguradoras ou «sub-sistemas de saúde»

A CNPD já se pronunciou por várias vezes sobre esta questão, tendo concluído o seguinte:

A entidade prestadora tem que facturar, de forma discriminada, os cuidados de saúde realizados.

A comunicação de dados de facturação decorre de vontade expressa pelo titular dos dados junto da entidade que prestou os cuidados, no sentido de que – à luz de um contrato que celebrou com uma seguradora ou por ser beneficiário de um sub-sistema – os encargos com a assistência médica serem suportados, respectivamente, pela Companhia de Seguros ou pelo sub-sistema. Assim, entende-se que há legitimidade de comunicação de dados nos termos do artigo 7.º n.º 4 da Lei 67/98 na medida em que a informação sobre facturação pode ser enquadrada nas finalidade de «gestão de serviços de saúde».

Em relação ao detalhe da discriminação considera a CNPD que os dados a comunicar devem ser os estritamente necessários à facturação e à cobrança dos cuidados prestados, não devendo o suporte a enviar conter dados sobre diagnóstico ou que permitam uma violação da intimidade da vida privada do doente.

A CNPD admite a comunicação destes dados às seguradoras e aos sub-sistemas, desde que essa comunicação seja feita a «profissional de saúde obrigado a sigilo ou a outra pessoa igualmente sujeita a segredo profissional» (cf. art. 7.º n.º 4). Assim, a seguradora deverá indicar um profissional de saúde ao cuidado de quem são comunicados os dados.

Por isso, tem a CNPD concluído o seguinte:

a) Autorizar a comunicação dos dados estritamente necessários à facturação e cobrança dos cuidados prestados que permitam à seguradora ou aos sub-sistemas avaliar, com rigor, os montantes a pagar.

b) A comunicação deve ser feita a «profissional de saúde obrigado a sigilo ou a outra pessoa igualmente sujeita a segredo profissional», devendo as entidades (sub-sistemas ou seguradoras) indicar um profissional de saúde ao cuidado de quem são comunicados os dados.

III. Solicitações de instituições de saúde e seguradoras de documentação necessária à continuidade da prestação de cuidados

A resposta a esta questão pode ser encontrada em várias disposições já citadas. A Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90, de 24 de Agosto) impõe «uma intensa articulação entre os vários níveis de cuidados de saúde, sendo de garantir a circulação recíproca e confidencial da informação clínica relevante sobre os utentes» (Base XIII, n.º 2). O artigo 78.º do Código Deontológico obriga o médico, sempre que o interesse do doente o exija, a comunicar a qualquer outro médico assistente, os elementos do processo clínico necessários à continuidade dos cuidados.

Existe outra legislação avulsa (v.g. sobre acidentes de trabalho) que impõe uma “obrigação de comunicação”. Nos termos do artigo 28.º n.º 2 do DL 143/99, de 30 de Abril, o médico assistente (v.g. da seguradora) tem acesso a “toda a documentação clínica respeitante ao sinistrado em poder do estabelecimento hospitalar”. Também o artigo 33.º do mesmo diploma obriga os estabelecimentos hospitalares a “fornecer aos tribunais do trabalho todos os esclarecimentos e documentos que lhes sejam requisitados relativos a observações e tratamentos feitos a sinistrados”.

Por isso, será de concluir que – para efeitos de continuidade da prestação de cuidados de saúde – deve ser enviada a documentação clínica, com salvaguarda da confidencialidade dos dados, ao «médico assistente» que assegurar a continuidade dos cuidados.

IV. Pedidos formulados para elaboração de relatório de reforma e aposentação

Para apreciação da possibilidade de acesso à informação clínica no contexto da aposentação ou da reforma por invalidez interessa saber se – em obediência à previsão do artigo 7.º n.º 2 da Lei 67/98 («disposição legal») – a respectiva legislação permite a comunicação de dados.

Nesta sede há legislação específica, conforme o trabalhador seja um funcionário público ou trabalhador a quem é aplicável o regime de segurança social.

1. Em relação ao funcionário público é aplicável o regime constante do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo DL 498/72, de 9 de Dezembro. A incapacidade é verificada através de junta médica.

Nos termos do artigo 96.º n.º 1 “sempre que uma junta médica considere necessária a apresentação de radiografias e outros meios auxiliares de diagnóstico ou de parecer de médico especialista, poderá a Administração da Caixa requisitá-los aos competentes serviços do Estado, que lhos remeterão directamente”.

Esta possibilidade não invalida que o próprio interessado junte documentação ao processo (cf. n.º 2) ou, expressamente, solicite e autorize a requisição de documentação clínica que lhe respeite e que ele saiba ser relevante para o processo e esteja em poder dos Hospitais ou dos Centros de Saúde.

2. Em relação a trabalhador do regime de segurança social é aplicável o DL 329/93, de 25 de Setembro, o qual, no seu artigo 64.º n.º 1, dispõe que “a verificação das incapacidades permanentes e das situações de dependência para atribuição de prestações é realizada pelos centros regionais de segurança social no âmbito do sistema de verificação das incapacidades permanentes”, adiantando o n.º 2 do mesmo preceito que “constituem órgãos especializados do sistema de verificação das incapacidades permanentes as comissões de verificação, as comissões de recurso e os médicos relatores”.

O artigo 65.º manda avaliar a incapacidade permanente “em função das faculdades físicas e mentais do beneficiário, do estado geral, da idade, das suas aptidões de natureza profissional e da capacidade de trabalho remanescente”.

O sistema de verificação das incapacidades tem assento no DL 360/97, de 17 de Dezembro, o qual regula, com detalhe, todo o processo. Merecem especial referência os seguintes preceitos:

a) O artigo 46.º n.º 1 refere que “a informação médica deve identificar, de forma legível, o médico que a elaborou e estar actualizada e devidamente instruída com os relatórios de especialistas e elementos auxiliares de diagnóstico que fundamentam o respectivo parecer”. O n.º 2, em complemento do número anterior, salienta que “se o médico assistente não possuir os elementos auxiliares de diagnóstico, por estes se encontrarem em outros serviços ou hospitais, deve proceder à respectiva solicitação ou indicar na informação médica qual a entidade que os detém([29])”;

b) Nos casos em que a verificação de incapacidade é promovida oficiosamente “o beneficiário é informado de que deve comparecer acompanhado da necessária informação médica, bem como dos elementos auxiliares de diagnóstico ou relatórios de especialistas que a fundamentem, aquando da convocatória para o exame médico a realizar pelo médico relator” (artigo 47.º n.º 1). Caso a informação médica se revelar insuficiente, “podem os médicos relatores requerer os exames e meios auxiliares de diagnóstico que considerarem indispensáveis ou solicitar ao médico que elaborou a informação médica o seu aperfeiçoamento no prazo de 10 dias” (n.º 2);

c) O artigo 48.º permite que os médicos relatores e peritos médicos das comissões de verificação e de recurso, no caso de concluírem pela necessidade de complementar a informação médica com pareceres de médicos especialistas ou de outros meios auxiliares de diagnóstico que se afigurem indispensáveis à peritagem médica, os solicitem, indicando nos pedidos o carácter de urgência que o caso revestir e a respectiva fundamentação.

d) O artigo 54.º pretende que o relatório, elaborado pelo médico relator, expresse “o estudo exaustivo da situação clínica do beneficiário em face dos seus antecedentes clínicos, designadamente a informação do médico assistente, a documentação subsidiária e os pareceres de médicos especialistas, e concluir, de forma inequívoca, quanto à origem e natureza da situação verificada, referindo, com o maior desenvolvimento possível, a sintomatologia e a observação do aparelho ou órgãos afectados que deram origem à incapacidade ou dependência”. Este objectivo só pode ser atingido se houver uma cooperação entre os serviços de saúde.

A CNPD considera que todo o sistema de verificação de incapacidade assenta na necessidade de apreciar, com o devido rigor, o grau de incapacidade e efectiva capacidade para o trabalho. Daí que o legislador, porque está em causa um “interesse público”, aponte para a obtenção de todos os elementos clínicos relevantes (v.g. documentação em poder dos serviços hospitalares, do médico assistente, bem como solicitação de pareceres a médicos especialistas).

A CNPD entende que a solicitação e remessa da informação deve obedecer a pressupostos fundamentais que devem ser observados pelos vários intervenientes:

1. A junta médica ou entidade requisitante, em pedido fundamentado, especifica a natureza da lesão por forma a permitir que o Hospital, Centro de Saúde, médico assistente ou director clínico possam enviar, toda a informação clínica necessária às finalidades (apreciação da natureza e grau de incapacidade).

2. O Hospital, tendo em conta o pedido formulado, deve limitar-se a enviar a informação estritamente necessária a satisfazer a solicitação;

3. A entidade requisitante deve indicar médico à ordem de quem deve ser enviada a documentação clínica, assegurando, assim, a circulação confidencial da informação.

V. Cópia de documentação clínica a solicitação dos Tribunais e da Polícia

1. A CNPD já se pronunciou, recentemente, sobre a cedência de dados a pedido das autoridades judiciárias([30]). Dizia-se nessa Deliberação que: «Aos tribunais, “em nome do povo”, compete administrar a justiça, assegurando “a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, dirimindo “os conflitos de interesses públicos e privados” – cf. art. 202.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Daí, por um lado, a garantia fundamental do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, “em prazo razoável e mediante processo equitativo” – cf. art.s 20.º da CRP, 10.º da DUDH e 6.º da CEDH – e, por outro, o “direito à coadjuvação de outras autoridades” no exercício das suas funções – cf. art.s 202.º n.º 3 da CRP e 13.º n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13/01.

Em matéria de direito processual penal, cuja finalidade última é a descoberta da verdade dos factos e, consequentemente, a realização da Justiça, apesar do denominado princípio da investigação permitir “a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário” – vd. Art.s 323.º als a) e b) e 340.º do CPP – uma e outra só poderão ser procuradas “de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas” envolvidas no processo.

A comprová-lo, o expressamente estatuído nos art.s 32.º n.º 8 da CRP e 125.º do CPP, não admitindo as “provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão da vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

O mesmo diremos no respeitante ao direito processual civil, para o qual o disposto no art. 519.º do CPC prevê o “dever de colaboração para a descoberta da verdade” e, no art. 519.º-A seguinte, expressamente se permite o acesso à informação, manual ou automatizada, relativamente à “identificação, à residência, à profissão e entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente”, limitando embora a utilização de tal informação ao “estritamente indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objecto de ficheiro de informações nominativas”.

Bem comprovativo da necessidade de tais procedimentos com vista ao combate da morosidade processual, aí está o agora disposto no art. 238.º, na redacção dada pelo Dec.Lei 183/2000, de 10/08, permitindo mesmo o acesso às bases de dados pertinentes.

Diríamos finalmente que, em matéria de utilização da informática, o disposto no art. 35.º n.º 4 da CRP admite o acesso a dados pessoais de terceiros nos “casos excepcionais previstos na lei”».

Estando em causa a comunicação de dados de saúde – susceptíveis de integrarem informação relativa à vida privada (cf. art. 519.º n.º 3 al. b) do CPC) e sujeitos ao dever de sigilo profissional para os profissionais de saúde do Hospital (cf. art. 519.º n.º 3 al. c) do CPC e os artigos 135.º e 182.º do CPP) – admite a CNPD a cedência da informação a pedido da autoridade judiciária competente, com observância dos seguintes princípios:

a) O despacho da autoridade judiciária deve ser fundamentado e especificar os motivos determinantes do pedido de colaboração, por forma a permitir que o responsável pelo tratamento ou alguém por ele mandatado (v.g. o director clínico) possa pronunciar-se e ponderar a relevância do pedido, podendo, nos termos legais (cf. art. 135.º e 192.º n.º 1 e 2 do CPP e art. 519.º n.º 4 do CPC) “escusar-se” a fornecer os elementos, por terem invocado o segredo profissional;

b) Havendo “dúvidas fundadas sobre a ilegitimidade da escusa”, a autoridade judiciária, depois de proceder às “averiguações necessárias pode ordenar a prestação de informações (cf. art. 135.º n.º 2 e 182.º n.º 1 e 2 do CPP e art. 519.º n.º 4 do CPC) ou suscitar a resolução do incidente no Tribunal Superior, conforme resulta, respectivamente, do disposto no artigo 135.º n.º 3 do CPP e, por remissão, do art. 519.º n.º 4 do CPC.

2. Em relação à obrigação de fornecimento da documentação clínica às autoridades policiais (Polícia Judiciária, PSP, GNR) entende a CNPD que não existe disposição expressa que legitime uma obrigação de fornecimento da informação de saúde.

O estatuto orgânico destas entidades policiais – pela natureza e formulação demasiado genérica das disposições relativas à «obrigação de colaboração» e às suas competências – não permite concluir que tenha sido objectivo do legislador vincular os serviços de saúde a revelar dados clínicos dos utentes.

Vejamos o que os respectivos estatutos orgânicos dispõem:

a) Nos termos do artigo 2.º do DL 275-A/2000, de 9 de Novembro, a Polícia Judiciária coadjuva as autoridades judiciárias na investigação (al. a) e desenvolve e promove acções de prevenção (al. b). Em matéria de «prevenção criminal» o artigo 4.º enuncia as suas competências e especifica o dever de colaboração de diversas entidades, não sendo possível retirar deste preceito qualquer poder para solicitar documentação clínica. O artigo 6.º consagra um «dever geral de cooperação»([31]) o qual, pela sua formulação genérica, não permite servir de base ao fornecimento de informação clínica([32]).

b) A Lei 5/99, de 27 de Janeiro, estabelece – no seu artigo 2.º alínea q) – que compete à PSP “colher as notícias dos crimes e descobrir os seus agentes”. O artigo 8.º n.º 2 considera que a PSP, enquanto órgão de polícia criminal, “actua sob a direcção e na dependência funcional da autoridade judiciária competente, em conformidade com as normas do Código de Processo Penal”.

c) Também o artigo 2.º al. c) e 4.º n.º 2 do DL 231/93, de 26 de Junho – Lei Orgânica da GNR – têm disposições similares às da PSP em matéria de coadjuvação dos órgãos de polícia criminal. O artigo 25.º determina que a Guarda “coopera com as demais forças e serviços de segurança, bem como com as autoridades públicas, designadamente com os órgãos autárquicos e outros organismos, nos termos da lei” (n.º 1), adiantando o n.º 2 que “as autoridades da administração central, regional e local e os serviços públicos devem prestar à Guarda a colaboração que legitimamente lhes for solicitada para o exercício das suas funções”.

Conforme ficou expresso nas considerações gerais, uma avaliação comparativa dos interesses ligados à confidencialidade e à divulgação não permite concluir que as disposições citadas permitam fundamentar a legitimidade para aceder à informação de saúde dos titulares.

Isto não significa que estas entidades policiais, no exercício das suas competências como «órgão de polícia criminal», não possam participar factos susceptíveis de procedimento criminal e – para o efeito – não possam identificar os utentes e, para o efeito, solicitar a colaboração em relação aos seus elementos de identificação (v.g. nome, idade, profissão, morada, n.º de BI, lesões visíveis ou averiguadas) necessários à elaboração da participação([33]).

VI. Pedidos efectuados por advogados do próprio com apresentação de procuração forense

O art. 63.º n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL 84/84 de 16 de Março, estabelece que “no exercício da sua profissão, o advogado pode solicitar em qualquer tribunal ou repartição pública o exame de processos, livros ou documentos que não tenham carácter reservado ou secreto, bem como requerer verbalmente ou por escrito a passagem de certidões, sem necessidade de exibir procuração”.

Como se referiu, a informação em causa tem carácter reservado.

Assim, em relação aos dados do seu cliente só será admissível a cedência da documentação clínica quando o advogado esteja munido de procuração com «poderes especiais» para o efeito).

VII – Acesso a dados por familiares de doentes falecidos

Em relação ao acesso aos dados por parte dos familiares há que diferenciar as questões que normalmente se vêm colocando.

Nos termos do artigo 70.º n.º 1 do Código Civil “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, sendo essas violações prevenidas através das «providências adequadas» e susceptíveis de acção de responsabilidade civil (cf. art. 70.º n.º 2 e art. 495.º e 496.º do Código Civil). Em face da «referência genérica» do preceito, a doutrina tem entendido que os direitos de personalidade incidem sobre “a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra…, a reserva sobre a intimidade da sua vida privada”([35]).

O artigo 71.º n.º 2 do Código Civil confere legitimidade ao “cônjuge sobrevivo ou qualquer ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido” para requerer providências em relação à ofensa de direitos de personalidade do falecido. Deste preceito decorre o princípio de que estas pessoas – pelos laços que o ligam ao falecido – estão em condições de respeitar (e de fazer respeitar) a sua memória e podem providenciar pela defesa dos direitos decorrentes da lesão. Conforme refere Mota Pinto, “em caso de lesão de que provenha a morte, o direito a indemnização é deferido às pessoas referidas no artigo nos artigos 495.º e 496.º. O direito à indemnização, nestes casos, resulta da lesão dum interesse próprio dos seus titulares (cf. art. 483.º)”.

1. Acesso, apenas, ao relatório da autópsia ou à causa da morte

Em face dos preceitos citados e da posição em que se encontram as pessoas referidas no artigo 71.º será de reconhecer-lhes, desde logo, um “direito à curiosidade” sobre a causa da morte, permitindo, assim, o acesso à informação necessária.

A revelação da causa da morte a estes familiares nem sempre encerra, no caso concreto, necessariamente, uma intromissão na vida privada ou hábitos de vida do falecido. Na maioria dos casos a doença já será do seu conhecimento – porque foi revelada pelo próprio ou pelo médico assistente – não apresentando qualquer novidade em face da sintomatologia ou diagnóstico apresentado nos momentos que precederam a morte. Muitas vezes, está inscrita no «Boletim de Óbito» que serve de base à realização do funeral e à elaboração da certidão de óbito.

Mesmo para os casos em que a causa da morte pode gerar uma certa “discriminação” ou “intromissão” – v.g. SIDA/HIV – o legislador presume, também aqui, que a pessoa a quem a informação é revelada preservará a memória do falecido e respeitará a sua intimidade, não divulgando indevidamente essa informação. Cabendo-lhe a tarefa de defesa contra ofensa dos seus direitos de personalidade, justifica-se que tenha acesso à causa da morte([36]). Os hospitais devem, por isso, informar as pessoas indicadas no artigo 71.º n.º 2 em relação à causa da morte.

2. Acesso a dados de saúde

Em relação ao acesso aos dados de saúde do falecido entendemos, por princípio, que não deve ser facultado o acesso dos familiares à informação constante da ficha clínica pelas razões já enunciadas: dever de confidencialidade por parte dos serviços de saúde e reserva da intimidade da vida privada. Não há qualquer justificação para admitir que o “direito à curiosidade” seja suficiente para fundamentar o acesso à informação registada na ficha clínica.
Não parece haver qualquer fundamento legal, na Lei 67/98, que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora.

Acontece, porém, que razões dignas de protecção podem ser determinantes para fundamentar o direito de acesso:

1) O caso típico é aquele em que o familiar indicado no artigo 71.º n.º 2 do Código Civil pretende ter acesso à informação clínica no sentido de apurar a responsabilidade da Administração em relação à qualidade dos cuidados de saúde prestados ao falecido ou apuramento de eventual negligência na prestação desses cuidados.
Para além de o pedido pretender clarificar se estamos perante um acto ou omissão geradores de responsabilidade da Administração e dos seus agentes, contribui para esclarecer e documentar os comportamentos da própria actividade administrativa. Será o caso típico em que Administração não pode fechar-se com o objectivo de esconder as suas próprias «debilidades».
Estes acontecimentos – geradores de “direitos” (direito à indemnizações) – são susceptíveis de «declaração», «exercício» ou «defesa» em processo judicial. Quando assim for – se os familiares invocarem a necessidade de acesso para processo judicial – será legítimo o acesso, por força do artigo 7.º n.º 3 al. d) da Lei 67/98. Anota-se, porém, que a informação só pode ser utilizada, exclusivamente, para essa finalidade.
A mesma disposição da Lei 67/98 já permitirá o fornecimento da documentação clínica se – no contexto de um seguro de vida – a Companhia se recusar a pagar a indemnização devida e o beneficiário pretender intentar, para o efeito, processo judicial.

2) Acontecem, por vezes, situações em que o médico assistente do requerente (um dos familiares indicados no artigo 71.º n.º 2 do CC) pretende relacionar a doença do falecido com a sintomatologia apresentada pelo interessado (com objectivo de tomar medidas preventivas ou fazer diagnóstico – v.g. doenças hereditárias ou genéticas). Nos termos do artigo 7.º n.º 3 al. a) será legítimo fornecer a documentação clínica – através do «médico assistente» do interessado – uma vez que está em causa a protecção de um «interesse vital» do requerente, digno de protecção legal.

VIII. O acesso às Companhias de Seguros no contexto da morte de titulares de seguros de vida

Esta tem sido uma questão que já foi suscitada na CADA e que, ultimamente, tem merecido uma decisão uniforme que aponta para a negação do acesso no caso de não ser comprovado um efectivo “interesse pessoal, directo e legítimo”([37]).

1. A primeira questão que interessa abordar é se a morte tem efeitos em relação à tutela da personalidade. O artigo 71.º n.º 1 do Código Civil dispõe que «os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular».

Apesar da morte, nada impede que haja bens da sua personalidade que subsistam nas relações jurídicas e, por isso, sejam susceptíveis de protecção (v.g. a honra, o seu nome e a sua vida privada). Deve ser guardada a reserva quanto à intimidade da vida privada ou da esfera de sigilo do falecido.

A nossa lei fixa, em alguns casos, um período temporal relevante para a defesa da personalidade do defunto: o DL n.º 16/93 fixa um prazo de 50 anos sobre a data da morte e o crime de “difamação à memória do falecido” deixa de ser punível quando decorram 50 anos sobre a data da sua morte (art. 185.º n.º 3 do CPenal).

O direito ao sigilo e à confidencialidade sobre os seus dados de saúde será, por certo, um daqueles direitos que merecem protecção para além da morte do falecido e que, pela sua própria natureza, estão ligados à sua personalidade e não ao seu “próprio corpo”.

2. A primeira interrogação relevante para a apreciação deste aspecto é a de saber se será legítimo – por exemplo – os hospitais facultarem os dados de saúde em vida do cidadão, ou seja, no momento da celebração do seguro de vida. A resposta é clara e resulta do disposto no artigo 7.º n.º 2 da Lei 67/98: não havendo qualquer disposição legal que permita o acesso à informação de saúde do cidadão que pretende celebrar um contrato de seguro, só o «consentimento expresso»([38]) pode legitimar o fornecimento dos dados à companhia de seguros.

É no momento da celebração do contrato que a seguradora tem que calcular o risco e, por isso, fazer as diligências sobre o estado de saúde do segurado. Seria de grande interesse para ela, no momento da celebração do contrato, poder dispor da informação que lhe permitisse delimitar o grau de risco. Para o efeito, ou obtém o consentimento ou realiza, também com o seu consentimento, exames ao segurado.

Não vemos que haja substanciais diferenças jurídicas – ao nível da legitimidade – entre os dois momentos aqui considerados.

Ninguém coloca em causa que, em vida do cidadão, o acesso à informação de saúde em poder da Administração para fins de “instrução de contrato de seguro” só será admissível se for autorizado pelo titular. Estamos perante “situações privadas pactuadas” decorrentes de contrato bilateral alheio à Administração, obrigada a um dever de confidencialidade e de “confidência necessária”, e em que domina a autonomia da vontade.

3. Como refere o Acórdão do STA de 13/5/98, os “interesses de natureza privada” podem ser acautelados por outros meios (poderes do tribunal no âmbito do processo civil) e não através da violação do sigilo médico. Nesta sede o Tribunal, em face de outra prova apresentada, sempre se poderá pronunciar pela pertinência e necessidade absoluta de quebrar o segredo, através dos mecanismos legalmente estabelecidos e já referidos.

4. A verdade é que não existe na Lei 67/98 ou noutra disposição legal qualquer norma que autorize a Companhia de Seguros, nestas circunstâncias (sem consentimento e depois da morte), a aceder à informação clínica em poder dos hospitais ou centros de saúde.

A revelação dos dados de saúde viola as disposições legais sobre confidencialidade e reserva da intimidade da vida privada acima enunciadas as quais, na sequência do estabelecido no artigo 268.º n.º 2 da CRP, integram os limites resultantes daquela “reserva de lei”. A confrontação do artigo 268.º n.º 2 com as referidas disposições da Lei de Bases da Saúde, do DL n.º 16/93 e com a obrigação de confidência a que estão obrigados os profissionais (Código Deontológico) impõe, necessariamente, a proibição quanto ao acesso à informação.

Ainda assim, e mesmo que se pretendesse utilizar um juízo de necessidade e de proporcionalidade que deve presidir à harmonização entre os bens jurídicos conflituantes em presença[39] (art. 18.º n.º 3 da CRP), não há razões objectivas que justifiquem um sacrifício da reserva da intimidade da vida privada em detrimento da invocação de um simples e hipotético “interesse” – sistemático (para todos os casos de morte) e não fundamentado em qualquer suspeita ou indício – que decorre da obrigação de cumprir um contrato. O dever de confidencialidade é estabelecido, conforme se referiu, para salvaguarda da privacidade do doente por exigências de interesse público e para defesa da confiança que deve presidir a toda a organização do sistema e da prestação de cuidados de saúde.

Este interesse público geral não pode ser sacrificado por hipotéticos e, muitas vezes, mal definidos “interesses” privados de um dos contraentes que pretende satisfazer interesses económicos unilaterais, à custa da violação da intimidade da vida privada do outro contraente.

Por isso, entende a CNPD que não será de autorizar o acesso das seguradoras à informação clínica de um segurado para efeito de instrução de processo relativo a seguro de vida.

Lisboa, 3 de Julho de 2001