Lei n.º 12/93, de 22 de Abril
Colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana
A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 164.º, alínea e), 168.º, n.º 1, alínea f), e 169.º, n.º 3, da Constituição, o seguinte:
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Âmbito material de aplicação
1 – A presente lei aplica-se aos actos que tenham por objecto a dádiva ou colheita de tecidos ou órgãos de origem humana, para fins de diagnóstico ou para fins terapêuticos e de transplantação, bem como às próprias intervenções de transplantação.
2 – A transfusão de sangue, a dádiva de óvulos e de esperma e a transferência e manipulação de embriões são objecto de legislação especial.
3 – São igualmente objecto de legislação especial a dádiva e a colheita de órgãos para fins de investigação científica.
Artigo 2.º
Âmbito pessoal de aplicação
1 – A presente lei aplica-se a cidadãos nacionais e a apátridas e estrangeiros residentes em Portugal.
2 – Em relação aos estrangeiros ocasionalmente em Portugal, o regime jurídico dos actos previstos no n.º 1 do artigo 1.º rege-se pelo seu estatuto pessoal.
Artigo 3.º
Estabelecimentos autorizados e pessoas qualificadas
1 – Os actos referidos no artigo 1.º, n.º 1, só podem ser efectuados sob a responsabilidade e directa vigilância médica, de acordo com as respectivas leges artis e em estabelecimentos hospitalares públicos ou privados.
2 – Podem ainda ser feitas colheitas de tecidos para fins terapêuticos no decurso de autópsia nos institutos de medicina legal.
3 – Os centros de transplante são autorizados pelo Ministério da Saúde e sujeitos à avaliação periódica das suas actividades e resultados por parte do mesmo Ministério.
4 – Os centros de transplante já em funcionamento não carecem da autorização prevista no número anterior, devendo, porém, submeter-se à avaliação periódica referida no mesmo número.
Artigo 4.º
Confidencialidade
Salvo o consentimento de quem de direito, é proibido revelar a identidade do dador ou do receptor de órgão ou tecido.
Artigo 5.º
Gratuitidade
1 – A dádiva de tecidos ou órgãos com fins terapêuticos de transplante não pode, em nenhuma circunstância, ser remunerada, sendo proibida a sua comercialização.
2 – É ilícito o reembolso das despesas efectuadas ou dos prejuízos imediatamente resultantes ou que tenham tido como causa directa os actos referidos no artigo 1.º, n.º 1.
3 – Os agentes dos actos referidos no artigo 1.º, n.º 1, e os estabelecimentos autorizados a realizar transplantes de tecidos ou órgãos podem perceber uma remuneração pelo serviço prestado, mas no cálculo desta remuneração não pode ser atribuído qualquer valor aos tecidos ou órgãos transplantados.
CAPÍTULO II
Da colheita em vida
Artigo 6.º
Admissibilidade
1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, só são autorizadas as colheitas em vida de substâncias regeneráveis.
2 – Pode admitir-se a dádiva de órgãos ou substâncias não regeneráveis quando houver entre dador e receptor relação de parentesco até ao 3.º grau.
3 – São sempre proibidas as dádivas de substâncias não regeneráveis feitas por menores ou incapazes.
4 – A dádiva nunca é admitida quando, com elevado grau de probabilidade, envolver a diminuição grave e permanente da integridade física e da saúde do dador.
Artigo 7.º
Informação
O médico deve informar, de modo leal, adequado e inteligível, o dador e o receptor dos riscos possíveis, das consequências da dádiva e do tratamento e dos seus efeitos secundários, bem como dos cuidados a observar ulteriormente.
Artigo 8.º
Consentimento
1 – O consentimento do dador e do receptor deve ser livre, esclarecido e inequívoco e o dador pode identificar o beneficiário.
2 – O consentimento é prestado perante médico designado pelo director clínico do estabelecimento onde a colheita se realize e que não pertença à equipa de transplante.
3 – Tratando-se de dadores menores, o consentimento deve ser prestado pelos pais, desde que não inibidos do exercício do poder paternal, ou, em caso de inibição ou falta de ambos, pelo tribunal.
4 – A dádiva de tecidos ou órgãos de menores com capacidade de entendimento e de manifestação de vontade carece também da concordância destes.
5 – A colheita em maiores incapazes por razões de anomalia psíquica só pode ser feita mediante autorização judicial.
6 – O consentimento do dador ou de quem legalmente o represente é livremente revogável.
Artigo 9.º
Direito a assistência e indemnização
1 – O dador tem direito a assistência médica até ao completo restabelecimento e a ser indemnizado pelos danos sofridos, independentemente de culpa.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, deve ser criado um seguro obrigatório do dador, suportado pelos estabelecimentos referidos no n.º 1 do artigo 3.º
CAPÍTULO III
Da colheita em cadáveres
Artigo 10.º
Potenciais dadores
1 – São considerados como potenciais dadores post mortem todos os cidadãos nacionais e os apátridas e estrangeiros residentes em Portugal que não tenham manifestado junto do Ministério da Saúde a sua qualidade de não dadores.
2 – Quando a indisponibilidade para a dádiva for limitada a certos órgãos ou tecidos ou a certos fins, devem as restrições ser expressamente indicadas nos respectivos registos e cartão.
3 – A indisponibilidade para a dádiva dos menores e dos incapazes é manifestada, para efeitos de registo, pelos respectivos representantes legais e pode também ser expressa pelos menores com capacidade de entendimento e manifestação de vontade.
Artigo 11.º
Registo Nacional
1 – É criado um Registo Nacional de não Dadores (RENNDA), informatizado, para registo de todos aqueles que hajam manifestado, junto do Ministério da Saúde, a sua qualidade de não dadores.
2 – O Governo fica autorizado, precedendo parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados, a regular a organização e o funcionamento do RENNDA e a emissão de um cartão individual, no qual se fará menção da qualidade de não dador.
3 – O RENNDA deve ser regulamentado e iniciar a sua actividade até 1 de Outubro de 1993.
Artigo 12.º
Certificação da morte
1 – Cabe à Ordem dos Médicos, ouvido o Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida, enunciar e manter actualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a registar-se, o conjunto de critérios e regras de semiologia médico-legal idóneos para a verificação da morte cerebral.
2 – O bastonário deve comunicar ao Ministério da Saúde o texto aprovado pela Ordem dos Médicos fixando os critérios e regras referidos no número anterior, para publicação na 1.ª série do Diário da República.
3 – A primeira publicação deve ser feita até 1 de Outubro de 1993.
vide Critérios de morte cerebral
Artigo 13.º
Formalidades de certificação
1 – Os médicos que procederem à colheita devem lavrar, em duplicado, auto de que constem a identidade do falecido, o dia e a hora da verificação do óbito, a menção da consulta ao RENNDA e do cartão individual, havendo-o, e da falta de oposição à colheita, os órgãos ou tecidos recolhidos e o respectivo destino.
2 – Na verificação da morte não deve intervir médico que integre a equipa de transplante.
3 – A colheita deve ser realizada por uma equipa médica autorizada pelo director clínico do estabelecimento onde se realizar.
4 – O auto a que se refere o n.º 1 deverá ser assinado pelos médicos intervenientes e pelo director clínico do estabelecimento.
5 – Um dos exemplares do auto fica arquivado no estabelecimento em que se efectiva a colheita e o outro é remetido, para efeitos de estatística, ao Serviço de Informática do Ministério da Saúde.
6 – Quando não tiver sido possível identificar o cadáver, presume-se a não oposição à dádiva se outra coisa não resultar dos elementos circunstanciais.
Artigo 14.º
Cuidados a observar na execução da colheita
1 – Na execução da colheita devem evitar-se mutilações ou dissecações não estritamente indispensáveis à recolha e utilização de tecidos ou órgãos e as que possam prejudicar a realização de autópsia, quando a ela houver lugar.
2 – O facto de a morte se ter verificado em condições que imponham a realização de autópsia médico-legal não obsta à efectivação da colheita, devendo, contudo, o médico relatar por escrito toda e qualquer observação que possa ser útil a fim de completar o relatório daquela.
CAPÍTULO IV
Disposições complementares
Artigo 15.º
Campanha de informação
1 – O Governo deve promover uma campanha de informação sobre o significado, em termos de solidariedade social, política de saúde e meios terapêuticos, da colheita de órgãos e tecidos e da realização de transplantes.
2 – A campanha de informação deve elucidar igualmente sobre a possibilidade de se manifestar a indisponibilidade para a dádiva post mortem, sobre a existência do Registo Nacional dessas decisões e sobre a emissão e uso do cartão individual em que essa menção é feita.
Artigo 16.º
Responsabilidade
Os infractores das disposições desta lei incorrem em responsabilidade civil, penal e disciplinar, nos termos gerais de direito.
Artigo 17.º
Norma revogatória
É revogado o Decreto-Lei n.º 553/76, de 13 de Junho.
Artigo 18.º
Entrada em vigor
1 – Os artigos 11.º e 12.º da presente lei entram em vigor nos termos gerais.
2 – As restantes disposições desta lei entram em vigor no dia seguinte ao da publicação na 1.ª série do Diário da República dos critérios e regras a que se refere o artigo 12.º e da comunicação do Ministro da Saúde declarando a entrada em funcionamento do RENNDA.
Aprovada em 9 de Fevereiro de 1993.
O Presidente da Assembleia da República, António Moreira Barbosa de Melo.
Promulgada em 24 de Março de 1993.
Publique-se.
O Presidente da República, MÁRIO SOARES.
Referendada em 26 de Março de 1993.
O Primeiro-Ministro, Aníbal António Cavaco Silva.