Acórdão n.º 1/2001
Processo n.º 157/99
4.ª Secção Social
Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1 – Mário João Morais Pinto, com os sinais dos autos, propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa a presente acção com processo ordinário contra o Estado Português – o Arsenal do Alfeite – estabelecimento fabril das Forças Armadas, também nos autos devidamente identificado, pedindo a condenação do réu:
A reintegrá-lo na categoria e horário para que foi contratado;
A pagar-lhe as remunerações vencidas no montante de 1 168 467$00 e as vincendas até ao trânsito em julgado da sentença, com as actualizações aplicáveis, incluindo férias, subsídios de férias e de Natal;
Uma indemnização legal por nunca ter beneficiado da segurança social e, consequentemente, por ter sempre suportado à sua conta os encargos com a saúde do seu agregado familiar;
E ainda ser condenado a liquidar os legais encargos à segurança social.
Alegou, em síntese:
Ter sido admitido ao serviço do R., verbalmente através de convite do médico-chefe de então, em 15 de Junho de 1982, para, por conta e às suas ordens, desempenhar as funções de médico no posto médico do estabelecimento fabril, utilizando os instrumentos de trabalho com que o mesmo se encontrava equipado;
Cumpria, sob as ordens do médico-chefe, o horário de trabalho que lhe foi fixado de vinte e cinco horas semanais, distribuídas por segundas-feiras, terças-feiras, quartas-feiras, quintas-feiras e sextas-feiras, das 9 às 14 horas, recebendo, ultimamente, o vencimento mensal de 89 250$00;
Foi despedido por despacho do administrador, notificado em 29 de Janeiro de 1986, com efeitos a partir de 1 de Abril de 1986.
Posteriormente, pretendeu o R. substituir o contrato de trabalho em vigor por um contrato de avença, o que o A. não aceitou, continuando a trabalhar até ao dia 3 de Junho de 1986, data em que foi impedido de entrar no local de trabalho pelos elementos da segurança do estabelecimento e, assim, impedido de continuar a exercer as suas funções.
2 – Contestou o Estado, representado pelo Ministério Público, por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou a incompetência do tribunal do trabalho, em razão da matéria, uma vez que o autor não se encontrava vinculado ao Estado por contrato de trabalho, mas antes por contrato de provimento celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro.
3 – Respondeu o A. à matéria da excepção, sustentando a competência do tribunal do trabalho.
4 – Prosseguindo o processo para julgamento, veio a ser proferida a sentença de fls. 45 e seguintes, que julgou procedente a excepção com absolvição do R. da instância.
5 – Agravou o A., mas a Relação de Lisboa, por acórdão de fls. 85 e seguintes, negou-lhe provimento, confirmando a decisão recorrida.
6 – Foi então interposto recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do artigo 107.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e por acórdão de fls. 161 e seguintes foi concedido provimento ao agravo, decidindo-se ser competente em razão da matéria o Tribunal do Trabalho de Lisboa.
7 – Retornado o processo ao tribunal de 1.ª instância, e porque o julgamento já havia sido realizado e nele fixada a matéria de facto, veio a ser proferida a muito douta sentença de fls. 183 e seguintes, que, por não fornecerem os autos elementos para se declarar a existência de um contrato de trabalho, julgou a acção improcedente e absolveu o R. dos pedidos formulados.
8 – De novo o A. interpôs recurso de apelação, mas a Relação de Lisboa, por douto acórdão de fls. 226 e seguintes, negou-lhe provimento, mantendo a absolvição do pedido do R. Estado Português.
II
1 – É deste aresto que vem a presente revista, também interposta pelo A. que, a final das suas doutas alegações, formula as seguintes conclusões:
1.ª O recorrente foi contratado verbalmente sem prazo para trabalhar no Arsenal do Alfeite, sob as suas ordens e direcção;
2.ª O Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, derrogou inequivocamente o Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro;
3.ª O recorrente foi contratado nos termos da legislação geral do trabalho, tal como os seus quatro colegas com situações fácticas iguais e que subscreveram o documento de fls. 8 e 9;
4.ª O contrato celebrado pelo recorrente com o recorrido é um contrato individual de trabalho, celebrado verbalmente;
5.ª Não foram preenchidas quaisquer formalidades previstas no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, ou no Decreto-Lei n.º 49 397, de 24 de Novembro de 1969, pelo que não poderia ter sido celebrado qualquer contrato de provimento;
6.ª O recorrido, ao propor ao recorrente a assinatura de um contrato de avença ou de provimento, está implicitamente a reconhecer que o vínculo existente entre ambos é de natureza diversa e com subordinação jurídica;
7.ª Os factos, formal e expressamente dados como provados, são mais que suficientes para qualificar a relação entre as partes como de relação de trabalho subordinado;
8.ª Os factos notórios e os não contraditados complementam o conhecimento da relação de trabalho subordinado existente entre as partes;
9.ª Os índices usados pela doutrina e jurisprudência para a determinação da subordinação jurídica no contrato individual de trabalho, para a profissão de médico, encontram-se na totalidade provados;
10.ª Conclusões iguais à anterior foram proferidas nos Acórdãos da 4.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Maio de 1992, 14 de Abril de 1993 e 23 de Fevereiro de 1994, nos processos n.os 3397, 3584 e 3872 em que foram autores três colegas do recorrente, subscritores com ele do documento n.º 2 junto a fls. 8 e 9 e com condições de trabalho absolutamente idênticas às provadas em julgamento;
11.ª Se, por mera hipótese académica, não fosse julgado como acaba de concluir-se, o que se não concede, então o acórdão seria nulo dado que não se pronunciou sobre factos dados como provados e confirmativos da subordinação jurídica do recorrente ao recorrido; seria também nulo por não apreciar a requerida nulidade da sentença; seria anulado o acórdão e o julgamento se a falta de resposta a um quesito sobre o facto nele referido fosse considerado essencial à decisão conscienciosa da causa. Donde,
12.ª A subordinação jurídica do recorrente ao recorrido está suficientemente dada como provada em julgamento;
13.ª No mínimo, a subordinação jurídica encontra-se suficientemente caracterizada pelos factos dados expressamente como provados, pelos factos notórios e pelos restantes, não contraditados pelo recorrido;
14.ª Pelo que o contrato existente entre as partes é um contrato individual de trabalho;
15.ª Por mera hipótese e se não se julgar como o anterior concluído, então o acórdão deverá ser declarado nulo por erro e omissão na apreciação das questões que lhe foram submetidas;
16.ª Foram violados, designadamente, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 49 408, o artigo 1142.º do Código Civil, os artigos 1.º, 4.º, 9.º, 10.º, 11.º, 16.º, 30.º e 119.º do Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, o Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro, e os artigos 264.º, 265.º, 514.º, 650.º e 664.º do Código de Processo Civil e o artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho.
2 – Contra-alegou o Ministério Público em representação do Estado, sustentando a confirmação do julgado.
3 – Tendo sido referenciados nos autos três arestos deste Supremo Tribunal sobre a mesma questão de direito e respeitantes a médicos, colegas do A. igualmente ao serviço do Arsenal do Alfeite, foram essas decisões mandadas juntar aos autos, por fotocópia e proposto pelo relator o julgamento ampliado de revista.
Por despacho do Exmo. Presidente deste Supremo a fl. 310 foi determinado o julgamento alargado para uniformização de jurisprudência.
III
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Registemos os factos que vêm fixados pelas instâncias.
Matéria de facto:
1.º O autor, desde 15 de Junho de 1982, exerceu funções de médico do Arsenal do Alfeite.
2.º Ultimamente o autor auferia 850$00 por cada hora de trabalho prestado.
3.º O autor, como outros médicos mais (no mínimo mais 20), cumpria o horário de trabalho (consultas) que estava afixado nas instalações do Arsenal do Alfeite.
4.º O período em que o autor dava as consultas referidas na alínea anterior era das 9 às 14 horas, de segunda-feira a sexta-feira, inclusive.
5.º A admissão do autor foi feita através de anúncios publicitários nos jornais e com posterior classificação.
6.º Autor e réu não chegaram a reduzir a escrito as relações que ligavam um ao outro.
7.º O director do pessoal do Alfeite remeteu ao autor um documento, cuja fotocópia faz fl. 10 dos autos, datado de 29 de Janeiro de 1986, do qual consta: «[…] é extinta a relação de serviço, por despacho do administrador de 29 de Janeiro de 1986, entre o Arsenal do Alfeite e V. Ex.ª, face ao que antecede e com efeitos a partir de 1 de Abril de 1986, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 49 397, de 24 de Novembro de 1969, por remissão do artigo 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro».
8.º O mesmo director do pessoal remeteu ao autor o documento que constitui a fl. 11 dos autos e ainda o documento que constitui a fl. 12, dos quais consta:
Documento de fl. 11: «[…] após a notificação de 29 de Janeiro de 1986 da extinção da relação de serviço, só existem duas alternativas para continuar ao serviço do estaleiro:
a) Assinar contrato de avença, com efeitos a partir de 1 de Abril de 1986;
b) Optar, por escrito, por contrato de provimento, celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro».
Documento de fl. 12: «[…] o Arsenal teria toda a conveniência em continuar a usufruir os serviços desses médicos.
Dado, porém, que não aceitam nenhuma das vias propostas, aliás as únicas que o Arsenal considera legalmente possíveis, terão de cessar de imediato a sua actividade no estaleiro na sequência da notificação que lhes foi feita em Janeiro de 1986».
9.º O autor e cinco médicos mais subscreveram a exposição que em fotocópia constitui o documento de fls. 8 e 9 dos autos, pugnando pela formalização do contrato individual de trabalho.
10.º No quadro do Arsenal do Alfeite eram apenas considerados, para o posto médico, um médico-chefe e dois enfermeiros.
11.º O autor, apesar de notificado da posição tomada pelo Arsenal do Alfeite, por carta datada de 27 de Maio de 1986, ainda se apresentou nas instalações daquele Arsenal do Alfeite, até ao dia 3 de Junho de 1986, data em que foi impedido do acesso ao posto médico.
12.º O autor nunca apresentou qualquer autorização para acumular funções como médico de clínica geral.
l3.º O autor não fazia descontos para o imposto profissional, sendo fornecida pela Divisão do Pessoal uma declaração para tal isenção.
Estes os factos consignados na acta de julgamento e tidos como provados.
IV
Vejamos agora.
O direito.
1 – O douto acórdão recorrido concluiu pela não «existência de um contrato de trabalho subordinado entre A. e R., por não se haver provado a subordinação jurídica que é elemento essencial dum contrato de trabalho».
E acrescenta: «Não podendo deixar de se qualificar a relação de trabalho entre A. e R. como um contrato administrativo de provimento».
Anteriormente havia-se escrito no mesmo aresto: «É o que, aliás, resulta do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro, onde se estabelece que os médicos civis contratados ao serviço dos hospitais e estabelecimentos pertencentes às Forças Armadas sejam admitidos através de contrato de provimento».
Os passos transcritos focam as duas questões que nos autos se colocam e que, de algum modo, se entrelaçam e se condicionam.
Por um lado, importa averiguar se o referido Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro, é o diploma aplicável à situação dos autos ou se, como defende o autor, esse diploma foi tacitamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, no domínio do qual o autor foi admitido ao serviço do Arsenal do Alfeite.
Por outro lado, haverá que apurar se os factos provados reflectem ou não o elemento subordinação jurídica, consabidamente, «a pedra de toque» do contrato de trabalho subordinado.
Tocantemente ao Decreto-Lei n.º 33/80, cumprirá desde já adiantar que, por Acórdão do Tribunal Constitucional de 14 de Janeiro de 1988, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Fevereiro de 1988, foi declarada a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas com a expressa ressalva, ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, dos efeitos já produzidos até à data da publicação do acórdão no Diário da República.
Assim, a admissão do autor no serviço do Arsenal do Alfeite, em 15 de Junho de 1982, se for de concluir pela aplicação desse diploma, ficou salvaguardada por aquela ressalva.
O Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas.
E, conforme resulta do seu preâmbulo, o regime daquele pessoal «revela crescente tendência para se aproximar do regime fixado na legislação geral do trabalho». Por isso, reconhecendo a diferença qualitativa desse pessoal civil relativamente ao dos serviços departamentais das Forças Armadas, tendente a identificar-se com o regime da função pública, esse Estatuto dispôs no artigo 119.º que «a ulterior admissão de pessoal nos vários estabelecimentos fabris far-se-á, em regra, para a qualidade de empregado».
Entendeu-se no douto acórdão recorrido que à contratação do A. é aplicável o Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Fevereiro, em cujo artigo 3.º se estabelece que os médicos civis contratados ao serviço dos hospitais e estabelecimentos pertencentes às Forças Armadas sejam admitidos através de contrato administrativo de provimento.
E prossegue: «E foi isto o que se pretendeu, ao contratar o A., muito embora tal contrato tenha sido feito à margem da lei, pois que, além de não terem sido preenchidos os respectivos modelos e assinados os termos de posse, o A. nunca apresentou autorização para acumulação das funções, nos termos exigidos pela Lei […]. Daí que a sua cessação tenha sido lícita; embora por falta de formalismo legal se pudesse defender a nulidade deste contrato de provimento, o certo é que a Administração sempre podia pôr-lhe termo do modo como o fez, tendo em consideração a imposição do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro».
Assim, embora não tenham sido respeitados, minimamente, os formalismos legais estabelecidos no Decreto-Lei n.º 49 397, de 24 de Novembro de 1969, a qualificação do contrato como administrativo de provimento assentou apenas na imposição do citado artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 524-C/77, que estatui:
«Artigo 3.º
1 – Os médicos a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º são contratados além do quadro e em reforço a este, conforme as necessidades do serviço.
2 – O contrato, no caso de ter por objecto a prestação de serviço em tempo completo, será de provimento e considera-se sujeito às condições gerais previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 49 397, de 24 de Novembro de 1969, só podendo o contratado ser desvinculado do serviço por motivo disciplinar.
3 – Fora do caso previsto no número anterior, o contrato será de provimento e considera-se sujeito às condições gerais indicadas no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 49 397.»
O citado artigo 2.º estabelece o regime de trabalho dos médicos civis ao serviço das Forças Armadas, distinguindo: no n.º 1, os médicos em serviço nos hospitais militares, abrangendo: a) os internos de policlínica e de especialidade; b) os médicos especialistas e chefes de clínica; e c) os médicos não integrados nas carreiras médicas hospitalares; e no n.º 2, os médicos em serviço noutras unidades ou estabelecimentos militares.
Se acrescentarmos que o artigo 1.º se refere apenas às remunerações mensais, o que já resulta do preâmbulo como o principal objectivo do diploma, teremos que aquele transcrito artigo 3.º não é decisivo para a questão que nos ocupa.
Na verdade, escreve-se no preâmbulo: «Considerando a necessidade de uniformizar as remunerações auferidas pelos médicos civis que prestam serviço como contratados nos hospitais e estabelecimentos pertencentes às Forças Armadas;
Considerando que urge efectuar os ajustamentos indispensáveis na prestação do serviço daquele pessoal médico, por forma a coadunar as respectivas categorias e vencimentos com o que actualmente vigora para os médicos da carreira hospitalar dependente da Secretaria de Estado da Saúde depois da publicação do Decreto-Lei n.º 674/75, de 27 de Novembro:
O Conselho da Revolução decreta […]»
Temos, pois, que o diploma, dirigido aos médicos civis das Forças Armadas se justificou pela necessidade de uniformização de remunerações tendo em conta as em vigor para os médicos da carreira hospitalar e aproveitou para naquele artigo 3.º deixar algumas regras respeitantes ao seu recrutamento.
Surgiu posteriormente o Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas em cujo artigo 4.º, n.º 3, se permite a contratação nos termos da legislação geral do trabalho.
Nos termos do seu artigo 1.º, n.º 2, o diploma abrange «todos os indivíduos não militares nem militarizados que prestam serviço naqueles estabelecimentos sob a direcção e disciplina dos respectivos órgãos.».
E o problema que se coloca, como já se adiantou, é o de saber se o Decreto-Lei n.º 33/80 revogou tacitamente o Decreto-Lei n.º 524-C/77.
A resposta foi já dada afirmativamente por este Supremo Tribunal nos Acórdãos de 27 de Maio de 1992, de 14 de Abril de 1993 e de 23 de Fevereiro de 1994, respectivamente nos processos n.os 33 977, 3584 e 3872, desta 4.ª Secção (juntos por fotocópia de fl. 273 a fl. 309).
E, na verdade, assim deve ser entendido.
Não apenas por se tratar de lei posterior, mas antes, e sobretudo, por se tratar de uma lei orgânica que aprovou, simultaneamente, dois estatutos do pessoal civil das Forças Armadas: um dos serviços departamentais e outro dos estabelecimentos fabris.
Logo no preâmbulo se referem diferenças qualitativas entre o pessoal civil dos estabelecimentos fabris e o dos serviços departamentais, acrescentando-se:
«De facto, enquanto um, o pessoal civil dos estabelecimentos fabris -, e não só das Forças Armadas como também o do Estado em geral -, revela crescente tendência para se aproximar do regime fixado na legislação geral do trabalho, o outro tende a identificar-se com o regime da função pública.»
E assim é que nos artigos 4.º de cada estatuto se surpreendem e reflectem esses regimes diferentes, sendo oportuno realçar que apenas para os estabelecimentos fabris se prevê o exercício de funções com contrato nos termos da legislação geral do trabalho que dá ao seu titular a qualidade de empregado – artigo 4.º, n.º 3, desse Estatuto.
Aliás, o diploma vai mais longe, quando no artigo 119.º preceitua:
«A ulterior admissão de pessoal nos vários estabelecimentos fabris far-se-á, em regra, para a qualidade de empregado.»
Ora, o A. foi admitido ao serviço do Arsenal do Alfeite, pacificamente estabelecimento fabril, em 15 de Junho de 1982, ou seja, na plena vigência do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março.
Acresce que o artigo 1.º desse Estatuto declara aplicar-se «a todo o pessoal civil ao serviço dos estabelecimentos fabris», e não se vê razão para dele excluir os médicos.
Dir-se-á que os médicos têm um regime especial de recrutamento, precisamente o constante do citado Decreto-Lei n.º 524-C/77.
Todavia, o argumento não é decisivo.
Para além do que já se adiantou quanto ao carácter acidental do tratamento do problema do recrutamento num diploma – o Decreto-Lei n.º 524-C/77 – confessadamente destinado à harmonização das remunerações, acontece que o Decreto-Lei n.º 33/80 pretende fazer um tratamento global e sistemático ao anunciar no já citado preâmbulo:
«Até ao presente, apenas diplomas avulsos têm regulado parcelarmente, e nem sempre com coerência, certos aspectos do regime jurídico deste pessoal, fazendo-se desde há muito sentir a necessidade da legislação de carácter mais amplo e sistemático que não só harmonize critérios entre os três ramos das Forças Armadas, como, e muito em especial, assegure ao pessoal um estatuto claro, com a consequente estabilidade, garantia e melhoria de expectativas que isso significa para o seu futuro».
De tudo o que acaba de expôr-se parece forçoso concluir que o Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Março, revogou tacitamente o Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro, o que tem a consequência de arredar a imposição do contrato administrativo de provimento como única forma de recrutamento.
3 – Resta agora saber se a factualidade provada consente a qualificação do contrato como de trabalho subordinado.
Da matéria de facto dada como provada se recolhe que, como já ficou dito, não foram observadas as formalidades previstas no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 33/80 ou do Decreto-Lei n.º 49 397, de 24 de Novembro de 1969 – para o contrato administrativo de provimento, designadamente a obrigatoriedade da sua redução a escrito, a celebração pelo prazo de um ano (que poderia ser renovado até três anos), a submissão ao visto do Tribunal de Contas, e a publicação no Diário da República, a posse, etc.
Bastará destacar, daquela matéria de facto, que:
«5.º A admissão do A. foi feita através de anúncios publicitários em jornais e com posterior classificação.
6.º A. e R. não chegaram a reduzir a escrito as relações que ligaram um ao outro.»
Sintomática é também a posição assumida pelo director do pessoal do Arsenal do Alfeite, quando escreve:
No documento de fl. 11: «[…] após a notificação de 29 de Janeiro de 1986, da extinção da relação de serviço, só existem duas alternativas para continuar ao serviço do estaleiro:
a) Assinar contrato de avença, com efeitos a partir de 1 de Abril de 1986;
b) Optar, por escrito, por contrato de provimento celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 524-C/77, de 28 de Dezembro.»
E no documento de fl. 12: «[…] O Arsenal teria toda a conveniência em continuar a usufruir dos serviços desses médicos.
Dado, porém, que não aceitam nenhuma das vias propostas, aliás as únicas que o Arsenal considera legalmente possíveis, terão de cessar de imediato a sua actividade […]»
Os documentos são elaborados na perspectiva da aplicabilidade do Decreto-Lei n.º 524-C/77, com remissão para o Decreto-Lei n.º 49 397 e no pressuposto de estar interdita a celebração de contrato de trabalho subordinado, o que já vimos não ser a posição juridicamente correcta.
E, ao mesmo tempo, denuncia a convicção de que a relação de serviço não integrava nem um contrato de avença nem um contrato administrativo de provimento.
Por outro lado, reflecte, sem dúvidas, a cessação unilateral e não motivada da mesma relação de serviço.
Mas isso não significa, sem mais, que seja forçoso concluir pela existência de uma relação de trabalho subordinado.
Para tanto será necessário indagar se estão verificados os elementos caracterizadores do contrato de trabalho, tal como emergem do conceito vertido no artigo 1152.º do Código Civil coincidente com o constante do artigo 1.º da LCT.
«Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.»
E, desde logo, importará fazer o contraponto com a figura que lhe anda próxima, o contrato da prestação de serviços que o artigo 1154.º do Código Civil define como «[…] aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.»
São conhecidos os critérios de distinção entre uma e outra figura que, nuclearmente, se centram nos binómios actividade-resultado e subordinação-autonomia.
Assim como é conhecida a dificuldade prática da diferenciação nas situações concretas da vida real.
Por um lado, toda a actividade produz algum resultado, assim como todo o resultado pressupõe alguma actividade.
Por outro lado, o desenvolvimento de uma relação de trabalho subordinado pode comportar um acentuado grau de autonomia, assim como um contrato de prestação de serviços pode implicar o respeito por directrizes e instruções.
A este propósito, pelo interesse que oferece para o caso dos autos, ocorre transcrever a notável síntese constante do Acórdão deste Supremo de 2 de Novembro de 1994, no recurso n.º 4090, publicado em Acórdãos Doutrinais, n.º 399, p. 363.
«Aliás, podem ser objecto de contrato de trabalho e, portanto, exercidos em regime de subordinação jurídica, actividade cuja natureza implica a salvaguarda absoluta da autonomia técnica e científica do trabalhador, como acontece com o exercício da actividade do médico, do engenheiro ou do advogado. A dependência técnica e científica não é necessária à subordinação jurídica, podendo esta restringir-se a domínios de carácter administrativo e de organização.
Nessas situações, o trabalhador somente fica sujeito à observância das directrizes do empregador em matéria de organização do trabalho – local, horário, número de clientes, etc.
A subordinação jurídica pode, assim, respeitar apenas à organização da actividade laboral, não obstante englobar também o poder de determinar a função do trabalhador, já que cabe ao empregador a distribuição do posto de trabalho segundo o organigrama da empresa e as necessidades desta.
A subordinação jurídica existirá, pois, sempre que ocorra a mera possibilidade de ordens e direcção, bem como quando a entidade patronal possa de algum modo orientar a actividade laboral em si mesma, ainda que só no tocante ao lugar ou ao momento da sua prestação (cf. Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 112.º, p. 203; Galvão Teles, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 165 e 166; Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, 8.ª ed., pp. 104 e segs.; Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, pp. 286 e segs.; Motta Veiga, Direito do Trabalho, II, 1991, pp. 10 e segs.; Jorge Leite, Direito do Trabalho, 1982, pp. 220 e segs.).»
Todos os autores acabam por aceitar a necessidade de nos casos limite fazer intervir tópicos ou índices reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, fazendo apelo ao local do trabalho, à propriedade dos instrumentos de trabalho, ao horário, à sujeição a ordens e à disciplina, ao controlo da prestação, à retribuição, etc., logo acautelando o valor relativo de cada um deles e a sua valorização global em cada caso concreto – Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11.ª, p. 143.
No caso dos autos, não abundam esses elementos indiciários (ou porque não foram alegados, ou, porque, tendo-o sido, não foram devidamente valorizados em termos de matéria de facto provada: é o caso da parte final do artigo 7.º da petição – «recebia ordens do médico-chefe» – que o M.mº Juiz desprezou, sendo certo que obteve consagração na matéria de facto de todos os processos cujos acórdãos constam de fl. 274 a fl. 309.).
De todo o modo, os factos provados são bastantes para se surpreender a subordinação jurídica, como se evidencia no notável parecer do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto.
Na verdade, o A. exercia as suas funções nas instalações e com os meios fornecidos pelo Arsenal do Alfeite, dando consultas durante um horário previamente fixado, das 9 às 14 horas, de segunda-feira a sexta-feira, auferindo a retribuição de 850$00 por hora de trabalho.
No quadro de pessoal do Arsenal do Alfeite eram apenas considerados, para o posto médico, um médico-chefe e dois enfermeiros, mas aí prestavam serviço, como o A., cerca de 20 outros médicos.
Para além do que atrás se disse quanto às ordens que recebiam do médico-chefe, sempre resulta da própria natureza das funções médicas que a subordinação jurídica há-de bastar-se e circunscrever-se a aspectos circunstanciais de tempo, modo e local suficientemente concretizados na factualidade provada.
É que, como atrás ficou dito, atenta a co-natural autonomia técnica e científica, a subordinação jurídica pode restringir-se aos aspectos de carácter administrativo e de organização.
Assim, somos chegados à conclusão de que entre o A. e o R. vigorou um contrato de trabalho, que o R. fez cessar nos termos dos documentos de fls. 11 e 12 dos autos, ou seja, sem instauração de processo disciplinar e sem justa causa, o que representa um despedimento ilícito, por violador dos preceitos dos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º do Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de Julho, ao tempo em vigor.
Nesta conformidade, e atendendo a que o A. optou pela indemnização de antiguidade – cf. fl. 181 -, vai o R. condenado a pagar ao A.:
a) As remunerações vencidas até à propositura da acção, conforme discriminação feita no artigo 30.º da petição inicial, cujos montantes serão liquidados em execução de sentença;
b) As remunerações, incluindo férias, subsídios de férias e de Natal, que deveria ter normalmente auferido até à data da sentença; e
c) Uma indemnização de antiguidade, correspondente a um mês de retribuição por cada ano ou fracção, nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, e 20.º do Decreto-Lei n.º 372-A/75, ou seja, o equivalente a quatro retribuições mensais – 15 de Junho de 1982 a 3 de Junho de 1986 -, sendo, também, as quantias mencionadas nas antecedentes alíneas b) e c) a liquidar em execução de sentença.
Do mais peticionado – indemnização por não ter beneficiado da segurança social e encargos a ela respeitantes – vai o R. absolvido, uma vez que não ficaram provados factos que lhes sirvam de fundamento.
Finalmente, para efeitos de uniformização de jurisprudência, acorda-se na seguinte formulação:
«Os contratos verbais celebrados entre Arsenal do Alfeite e os médicos ao seu serviço no domínio da vigência do Decreto-Lei n.º 33/80, de 13 de Agosto, revestem a natureza de contratos de trabalho sujeitos ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, e não de contratos administrativos de provimento, se estiverem verificados os requisitos do contrato de trabalho, designadamente a subordinação jurídica.
A tal não faz obstáculo a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquele Decreto-Lei n.º 33/80 pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/88, de 14 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Fevereiro de 1988, uma vez que nele se faz expressa ressalva dos efeitos jurídicos produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais.»
Nestes termos, vai concedida a revista.
Sem custas, por delas estar o R. isento.
Lisboa, 13 de Março de 2001. – José António Mesquita (relator) – Vítor Manuel de Almeida Deveza – António Manuel Pereira – António Simões Redinha – José Manuel Martins de Azambuja Fonseca – João Alfredo Dinis Nunes – Mário José de Araújo Torres – Alípio Duarte Calheiros.